Estamos parados em um muro móvel, em uma transição que ainda pouco entendemos, mas sentimos, ignorando o que vem pela frente. Sabemos que estamos em uma penitência autoimposta, de isolamento de abraços, de alienação quebrada, e do resgate do mínimo: a vida cotidiana.
O coronavírus exibe tudo o que somos e que entendemos de nós. A cada interpretação deste processo, se demostram nossas possibilidades e horizontes: nossos sonhos e pesadelos não são maiores que nossa realidade, nascem dela. Alguns, como o governo federal, acreditam que a reflexão é perda de tempo. Assim, filosofia, sociologia, história e outras são áreas do conhecimento humano só “trazem atraso à humanidade”. Bom, essa linha de pensamento fala mais deles que dessas ciências especificamente.
O coronavírus nos traz uma série de questões e a cada um toca diferentes células. Comove-nos profundamente a feroz negligência do governo federal atual. Dói. Profundamente. Como a desigualdade. Mas ao mesmo tempo, tentando alguma estabilidade na catarata de informação planetária, existe uma constante: todos procuram uma solução mágica, uma forma de acreditar, de ter esperança em diferentes formatos. No bojo do drama humano em curso, os projetos de sociedades igualitárias precisam ser defendidos sob os signos da espera, da paciência, da angústia, e de relativa impotência. Não temos as ruas. Precisamos defender que os que tenham essa possibilidade não vão para as ruas. A defesa dos valores coletivos assume uma performance pouco visível, ausente do espaço público, restrita aos veículos de comunicação virtual.
Assim, as pessoas (e presidentes) navegam em seus delírios. Arsênico com doce de leite combate o coronavírus? Omeprazol com água sanitária limpa o estômago? A saída é vodca e masturbação? etc. A luta pelos imaginários é constante. Quem é o mau e quem é o bom? Quem nos vai salvar e liderar o mundo, China ou Estados Unidos?
O Ocidente, especialmente os Estados Unidos, lidera, historicamente, a construção de imaginários com alcance global. Nessa construção aparece sua filosofia, sua visão do mundo, seus valores, sua visão da economia e da sociedade. O neoliberalismo atravessa tudo nessa cultura, com valores e hierarquias. Nas últimas décadas, especialmente no cinema, os imaginários foram esboçando nortes e formas, sentenciando o correto e o errado, os valores a serem defendidos, os ganhadores e os perdedores, determinando as possibilidades de outros olhares. E há duas fortes imagens que aparecem dentro dos imaginários estadunidenses: os heróis e os zumbis.
Comecemos pelos últimos. Os zumbis estão mortos, mas vivos. Alguns são inteligentes, outros se tornaram máquinas sem alma, de pouca inteligência. Os zumbis são feios, não estão preocupados com a moda, nem a postura, pouco se importam pelo tipo de comida (a maioria faminta não é de veganos), melhor, não se importam com o estado da comida e, claro, de música, só lhes chama a atenção o som mais alto. Eles carecem de ritmo, ou gostam das danças dos 80s, tipo Thriller. Nesta construção das últimas duas décadas, quase coincidentemente desde 2001, os Estados Unidos deixaram claro que os zumbis são ruins e que eles só nos querem destruir ou comer. Talvez “The Walking Dead”, com uma década de TV, seja um exemplo. O “nós”(ocidente WASP?) são os bonitos, os inteligentes e os justos para morar na Terra. Filmes de zumbis têm de tudo, como área específica do cinema: terror, comédia, drama, românticos etc. Existe uma compreensão do mundo do “eles e nós” bem definida. Não existe dúvida da fronteira que separa os dois. O nível máximo de dúvida: a espera para saber se o humano se transforma em zumbis. Ponto. Somos diferentes, melhores e merecemos viver. Eles não.
Nessas últimas décadas, as versões dos zumbis não têm um cientista louco por trás, tipo Frankenstein; nem têm a linha badalada dos alienígenas (força incompreensível que traz diretamente o tema do minúsculo da humanidade). Os zumbis são um ex nós. E esta nova versão tem duas características: são matadores; e se expandem a partir de uma doença planetária que transforma a quase todos em monstros, ou seja, em zumbis. Ou seja, eles são nossos maiores temores.
Neste percurso de imaginários, os zumbis são uma construção do diferente de “nós”. O estrangeiro, o negro, o índio, o pobre, o feio, os ninguém. “Eles” (ou “nós”) são uma construção. “Eles” nos querem destruir ou comer. Não se dialoga com os que querem tirar “nossas” tradições e costumes. “Eles” são diferentes, rezam diferente, comem coisas diferentes, têm humor diferente, dançam diferente, eles colocam em xeque a “nós”. “Eles” ou “nós”?
Assim, se sintetiza: o planeta não é a convivência dos diferentes, mas a sobrevivência de só um deles. Com os zumbis, a vida de ninguém continua igual, porque se incorpora o outro, goste ou não goste. Dessa forma, tem que se adaptar a uma vida pior. O outro, não só nos ameaça, nos tira o “nós”. Como a figura do imigrante no discurso político atual. Os imaginários têm espaço e tempo. A última versão dos zumbis teve uma catarata de produções que deixaria com inveja qualquer um em Hollywood, mas colabora com a naturalização da narrativa de que que o diferente, a alteridade, é ruim. Um medo muito atual: o diferente. Claro, baseado nos princípios mais conservadores da existência: é sua vida ou a nossa? A reflexão, com os zumbis, fica castrada, de sentidos e símbolos.
Nesse sentido, há uma característica dos zumbis que está presente em todos os espaços do audiovisual: não é possível para falar com eles, não nos entendem. A palavra nunca é um recurso da relação com o “outro”. “Eles só querem nos comer ou destruir. Mesmo existindo inteligência, ela não é portadora de pontes e dos interesses do ‘nós’. Não importa o que eles nos possam dar.” Assim, tudo se reduz a morte ou vida, pela falta de interesse, por enxergar neles seres inferiores. Neste cenário, o sentimento de tolerância é um sentimento que só um suicida sem lógica pode estabelecer. “Eles” e “nós”? Não!
Essa xenofobia incorporada numa visão de imaginários é terrível e ela não está isolada. Existe a discriminação, o temor ao diferente, o medo da diversidade. Mas além disso, uma visão muito autoritária: morte ou vida. Não pode existir a tolerância. A dominação deles é a única possibilidade.
Existem os excluídos de sempre, claro. Estruturas institucionais dominadoras e racistas. O “make america great again” é a ideia básica da era dos zumbis. “Antes deles, tudo era melhor. Agora é um mundo apocalíptico desde a visão do consumo, de uma vida cotidiana que não existe mais por sua culpa. Nós não temos culpas, somos vítimas. E isso nos permite tudo, até desumanizarmos para defender a humanidade.” Não é, portanto, mero acidente irrefletido a qualificação de Trump faz da covid-19, como “gripe chinesa”. É uma síntese do espírito xenófobo e racista da extrema-direita global.
Os zumbis, nas margens, os ninguéns que geram uma aliança do “nós”. Nesta construção de imaginários e símbolos de épocas e espaços, os zumbis são os que atrapalham o sono do dominador e disciplina sua própria tropa.
Mas nesta construção de imaginários, os super-heróis estiveram presentes numa importante quantidade de produtos culturais. Nos Estados Unidos, o herói sempre está vinculado a sua posição de poder, acima ou fora da lei. Um herói, tem uma virtude que em geral quase ninguém tem, como ser bilionário. O herói é um bilionário, que por essa condição está acima das leis. Nada a ver com a realidade. O herói em geral tem uma característica: é solitário, individual, único. O herói trabalha sozinho (Superman), pelas costas das pessoas (Homem-Aranha), mesmo que alguns saibam disso (Alfred em relação ao Batman).
A colaboração entre heróis é como a relação entre estados: todos são soberanos, sabendo que alguns são mais fortes que outros. Os heróis são únicos e sozinhos. Não confundir com os últimos filmes da Marvel onde um monte de heróis lutam juntos. Ou seja, não é mais um filme de herói, mas sim filme de guerra. Todos são heróis que lutam num exército para salvar o mundo. Não são heróis, são bons sodados de um exército bom. Isso se chama marketing e consumo. Mas o herói é único. Se todos fossemos heróis, ninguém seria. Portanto, podem colaborar entre eles de forma esporádica, ante um entrave que precisa de solidariedade, mas herói trabalha sozinho e é individual e único, como sua virtude.
Esse modelo heroico é completamente distinto do clássico, no qual o heroísmo mantinha uma relação íntima com a bela morte. Morrer era a circunstância de efetivação da condição de heroica. As virtudes heroicas eram compartilhadas por todos sobre o denominador da morte, tornadas, consequentemente, modelos da vida coletiva. Os heróis contemporâneos da indústria cultural não possuem qualquer relação com a vida comum e tomam para si uma série de condições extraordinárias: eles agem em nome de todos sem serem eleitos; eles sabem o que é o melhor a fazer; eles não respeitam as leis, mas isso seria só um pequeno custo de os ter de nosso lado, o preço da servidão. Enfim, o herói tem todas as características de um autocrata, mas global, e com melhor marketing.
O neoliberalismo trouxe essas duas linhas. Os zumbis: “Eles” ou “nós”, “nossa” cultura ou “eles” quebrando “nossas” tradições; e os autocratas: “Eu os represento sem ser eleito, porque tenho virtude, sei o que vocês precisam. Às vezes, cuidar de vocês gera alguns custos, como quebrar as leis. Sou único.” Alguns valores são fixos: o excepcional acima de tudo, como os bilionários. Assim, o neoliberalismo é mais representativo que a democracia nesses imaginários. Importa a solução, não como ela vem.
O coronavírus, o novo arqui-inimigo, é perverso, porque deixa esses imaginários paralisados. O coronavírus é invisível, mas detectável. A única forma de pará-lo é a ação coletiva, com a solidariedade de todos. Então, inviabiliza a chamada do herói. Um médico sozinho não é herói, o sistema de saúde vai ser quem salva a todos. Um grupo, coletivo. A virtude já não é única nem individual, é coletiva. Não é por acaso que Trump e Bolsonaro, os principais representantes do neoliberalismo nas Américas, optaram, em um primeiro momento (o segundo persiste), pelo negacionismo e pela xenofobia. Também não é por acaso que aqueles que encarnam mais concretamente a natureza totalitária do neoliberalismo, como Rodrigo Duterte, nas Filipinas, tenham assumido a postura bélica contra aqueles que representem a ameaça de serem infectados, autorizando que a política atire nos que estiveram nas ruas. As duas retóricas que estruturam o neoliberalismo de extrema-direita se atualizam na crise (guerra e sobrevivência).
O coronavírus fala todas as línguas, lembra a todas as culturas que existiram outros momentos semelhantes de doenças, cada um a sua forma, com sua lembrança. Mas ela se torna única ao ser uma doença global de comoção imediata sem ter fronteiras. O mundo ficou menor, não o herói maior.
As respostas efetivas ao coronavírus quebram a lógica do “eles” ou “nós”. Nós somos eles. Por isso nos comove. Nós só podemos a ajudar a eles, que são nós também. Assim, apesar da diversidade cultural, das línguas e cores, o coronavírus se estende no planeta. Claro, afeta mais aos mais desprotegidos, por território e pela potência do racismo estrutural internacional e pela dominação. Ou seja, o coronavírus se adapta à realidade, e reconhece as vulnerabilidades.
O ponto: a humanidade precisa ativar não o imaginário criado pelo Ocidente, na premissa dos Estados Unidos de “eles” ou nós, ou de “só um herói salva”. Estamos diante da necessidade de uma revanche da solidariedade, inimiga número um do neoliberalismo. E com ela, aparecem outras virtudes que se expandem contra a visão individualista para que possamos sobreviver.
Nessa lógica, o coletivo e a solidariedade são características presentes na luta da sobrevivência contra um vírus global. Nada de heróis, nem de zumbis. “Eles” são “nós”. E “nós”, “eles”. E só juntos podemos parar e abraçar para continuar. Nem o herói solitário, nem o excepcional acima das leis, nem o inimigo é o outro. A cura para o vírus é a cura do nosso horizonte como sociedade. Sem ela, não há nós. E quando a chapa esquenta, só a solidariedade é uma possibilidade. Talvez o grande desafio da solidariedade esteja no egoísmo que o capitalismo ergueu dentro de nós, nas desigualdades que existem entre nós. O problema sempre fomos nós.
* Andrés del Río e André Rodrigues são doutores em ciência política pelo IESP-UERJ e professores adjuntos da UFF.
Publicado originalmente na Revista Escuta: LINk